Quem acessou o YouTube no último fim de semana não conseguiu abrir qualquer janela de conteúdo sem esbarrar com Jair Bolsonaro (PL).
Na versão comprada para as redes digitais, saía o presidente incendiário que debocha dos mortos e dos familiares dos mortos na pandemia e defende metralhar opositores e surgia um candidato sereno, sem erguer o tom de voz, disposto a convencer espectadores e eleitores moderados de que está em curso uma luta do bem contra o mal e que o “Brasil que estamos construindo” é o Brasil de “liberdade, respeito e prosperidade”.
A conversão de uma figura raivosa, despreparada e indisciplinada em político boa praça, amigo e defensor de nossas famílias, cheio de amigos e fãs, contou com a ajuda, no fim de semana, até de Neymar, estrela de uma superlive em que Bolsonaro exibiu os muitos trunfos anunciados em forma de apoio.
Na live, o atacante do PSG e da seleção brasileira deixou claro que seu apoio público se dava por uma orientação particular. “No momento mais difícil da MINHA vida, o presidente foi o primeiro a se posicionar dizendo que estaria do meu lado”.
Neymar falava de uma acusação injusta de violência que sofreu em 2019. A denúncia nunca foi provada e aconteceu pouco antes de uma patrocinadora romper o contrato com o atleta por conta de uma outra acusação, a de que ele teria assediado uma funcionária da empresa. Mas a parceria sobreviveu ao novo solavanco e hoje Neymar é um dos muitos brasileiros vestidos de verde e amarelo dizendo "eu autorizo" ao anunciar seu voto.
Dias antes, o atleta havia sentado no banco dos réus e, com um passe em forma de depoimento, deixou seu pai e empresário livre para responder a um processo por sonegação na Espanha.
Mas isso tudo é outra história. Ou não.
Ao menos esse detalhe seria pouco lembrado por quem anda petrificado pela virulência da campanha. Aparentemente, quem vê live mas não vê coração. E a exibição de Neymar como troféu não deixa de ser um gol do presidente em busca de apoio pela reeleição. Ou deveria ser.
Todo o esforço para apresentar um presidente popular e amigo dos boleiros e das famílias foi metralhado no mesmo fim de semana por um parceiro, digamos, menos virtual do atual presidente.
Neymar é a bola da vez, mas é Roberto Jefferson, ex-deputado e delator do chamado mensalão, quem atua de fato como ponta direita, jogando na extremidade do campo, do time de Bolsonaro.
Esse sistema ofensivo tem no líder do PTB um soldado disposto a gastar as balas reais e verbais em defesa da trincheira bolsonarista sob a tríade pátria, Deus e família, que ele emula e repete como militante que é.
E essa trincheira, no último fim de semana, voltou a mirar adversários e o Supremo Tribunal Federal, que proibiu uma emissora de rádio –logo uma concessão pública – e a própria campanha do candidato à reeleição de cometerem crimes ao espalhar notícias falsas e acusações infundadas contra o ex-presidente Lula (PT).
Por conta das restrições legais, bolsonaristas como Bob Jeff passaram os últimos dias dizendo estar sob censura, uma das muitas fake news colocadas em campo, como a que alterou uma foto do influencer Casimiro para mostrá-lo como outro apoiador do presidente – que ele não é.
Em vídeo postado por sua filha, Cristiane Brasil, Jefferson chamou a ministra Cármen Lúcia de “Bruxa de Blair”, “podre por dentro e horrorosa por fora”, e a comparou a “prostitutas” e “vagabundas arrombadas” por seu voto pela punição da Jovem Pan por declarações ofensivas e distorcidas contra Lula proferidas durante o suposto noticiário da emissora que supostamente deveria se portar como uma concessão pública, não partidária.
Jefferson expressava ali em palavras o que seu mestre e aliado, Jair Bolsonaro, não poderia proferir em viva voz para não afastar os eleitores moderados que tenta enganar novamente. Dobradinha parecida aconteceu quando, impedido de concorrer à Presidência, ele escalou um falso religioso, de nome Padre Kelmon, para fazer o trabalho sujo nos debates em que serviu de escada a Bolsonaro.
Com os ataques, Jefferson, que está preso em regime domiciliar por incitar crimes previstos na Lei de Segurança Nacional e descumpriu medidas cautelares impostas a ele, como a proibição de usar redes sociais, compartilhar fake news contra ministros do STF ou orientar os dirigentes de seu partido, sabia onde estava se metendo: fatalmente uma nova ordem de prisão seria proferida contra ele. Assim, poderia posar de mártir de uma suposta medida
autoritária de quem tentava censurá-lo.
A Polícia Federal desconfiava que queria cozinhar a situação até terça-feira, quando já não poderia ser preso por conta das eleições. Com a nova ordem de Alexandre de Moraes, alvo preferencial da turma, a PF foi até a casa do dirigente para levá-lo novamente à cadeia, de onde não deveria ter saído.
Os agentes foram recebidos à bala. Ao menos duas granadas e 20 tiros foram disparados contra um automóvel usado pelos policiais. Dois deles ficaram feridos.
Cada tiro era um estilhaço no discurso bolsonarista de que todo cidadão de bem tem o direito de se armar levando-se em conta a legítima defesa. Na prática, o que gente como Jefferson, apoiador de primeira hora de Bolsonaro, quer é tiro livre para cometer todo tipo de barbaridade contra a lei. Inclusive colocando a vida de policiais em risco.
O episódio serviu para mostrar que os policiais, uma das bases de apoio de Bolsonaro, serão as primeiras vítimas da violência quando criminosos vestidos de patriotas forem lembrados de que ainda existe lei no país e isso aqui (ainda) não é faroeste.
Como sempre acontece diante do potencial estrago, Bolsonaro correu em suas redes para negar o que estava claro às vistas de todo mundo: o ódio que ele e sua turma alimentam com discursos e arsenais é um grande risco à segurança nacional.
Jefferson queria a guerra, mas queimou a largada e foi empurrado sozinho para o tiroteio. Hoje é mais um a ser largado na estrada mas por uma imposição eleitoral: a uma semana das eleições, Bolsonaro já não pode sair em defesa do aliado, como fez com o deputado afastado Daniel Silveira, do mesmo PTB de Jefferson, sob o risco de rasgar a fantasia e afugentar parte dos eleitores.
Bolsonaro, por falha de memória ou de caráter, até tentou dizer que mal conhecia o meliante e nunca tirou foto com ele. Foi desmentido pelos fatos e uma coleção de imagens: Jefferson é o braço armado e extremo do bolsonarismo, e nem um caminhão de dinheiro para propaganda é capaz de tirar isso de cena. As digitais de Bolsonaro no episódio começam com o alinhamento de discurso e vai até a escalação de seu ministro da Justiça, Anderson Torres, para negociar a rendição, num ato simbólico de um sequestro a que estamos todos (inclusive os policiais escalados para cumprir a lei) estamos submetidos.
Não fosse o suficiente, os apoiadores de Jefferson e do presidente, desses que invadem festa e matam o aniversariante que ousa votar em outro candidato, foram convocados para cercar a residência do criminoso e demonstrar todo seu apoio. Lá, fizeram o que fazem toda vez que esbarram e um profissional de imprensa pintado como inimigo: um repórter cinematográfico foi agredido por bolsonaristas e chegou a desmaiar.
Esse é o clima para a semana derradeira das eleições.
Bolsonaro vai precisar de um time inteiro de Neymar para sair da trincheira que seu aliado fiel o colocou antes de se entregar à polícia, após oito horas de negociação.
O atentado, que muitos pensar ser só uma forma de tirar o ataque do governo ao salário mínimo de cena, pode respingar em sua campanha? Deve.