A nota dos comandantes militares defendendo a “manifestação crítica aos poderes constitucionais” em plena crise golpista reforça tal impressão, mas o presidente do STM não vê chance de desdobramentos ou punições a oficiais envolvidos. “Pode ser que haja um caso ou outro de omissão… mas acredito que dificilmente teremos crimes militares”, afirmou.
A fala do presidente do STM chama atenção porque todo delito cometido em áreas administradas pelas Forças Armadas é considerado crime militar. O Brasil todo viu bolsonaristas pregarem, por mais de dois meses, intervenção e golpe em frente ao Comando Militar do Planalto e ao Quartel-General do Exército. Além disso, o fracassado atentado a bomba na capital segue sob suspeita de ter sido arquitetado no acampamento em frente ao QG.
Golpe de estado e insurreição, conceitos usados por pesquisadores para explicar a crise que culminou no ataque de 8 de janeiro, não são considerados crimes no Código Penal Militar. O texto-base do atual código entrou em vigor em 1969, pouco tempo depois do Ato Institucional nº 5, que marcou a época mais violenta da ditadura.
“Foi uma lição importante, mas agora vamos olhar para frente e não cometer os erros do passado”, disse à Pública o presidente do STM, Joseli Parente Camelo.
À Pública, Camelo ainda negou que tenha colaborado com a equipe de transição do governo Lula na seara militar – o ministério da Defesa foi o único a não constituir um grupo de trabalho à época. “Talvez pela relação que construí com o presidente, disseram que influenciei, que falei com ele na transição. Mas não, só conversei com o presidente no dia da diplomação [12 de dezembro de 2022], e após eu ter tomado posse na presidência [do STM]”, disse.
O atual presidente da Justiça Militar passou para a reserva como tenente-brigadeiro da Aeronáutica, posto mais alto da Força Aérea Brasileira. Responsável pelo comando do avião presidencial por 12 anos, Joseli Camelo pilotou a aeronave nos primeiros mandatos de Lula e Dilma Rousseff (PT), somando mais de 10 mil horas de voo no período. Ele virou ministro do STM logo depois, em 2015, indicado pela então presidenta Dilma Rousseff.
O presidente do STM recebeu a equipe da Pública em Brasília em seu gabinete, em 15 de janeiro passado.
Confira os principais trechos da entrevista:
Agência Pública: Poderia explicar o que diferencia o crime militar do crime civil? Qual a área de atuação – e os limites – da Justiça Militar?
Joseli Camelo: A Justiça Militar foi criada em 1808 com a chegada de D. João VI ao Brasil. Uma das primeiras medidas dele foi criar, por alvará com força de lei, o Conselho Supremo Militar e de Justiça na cidade do Rio de Janeiro (RJ). Já existia uma noção da importância de termos um Exército disciplinado, e daí veio a nossa competência – que é tutelar a disciplina e a hierarquia no centro das Forças Armadas. Atuamos ininterruptamente desde então, atravessando todos esses movimentos e ‘revoluções’, procurando garantir a hierarquia e a disciplina no seio da tropa.
Quanto aos crimes militares, eles estão definidos em nosso Código Penal Militar. Basicamente, o crime militar é aquele cometido por militar contra militar; em lugar sujeito à administração militar; e também contra o patrimônio militar. Até 2017, nós julgávamos apenas o que estava dentro do Código Penal Militar. A partir daquele ano, com a aprovação da Lei nº 13.491, passamos a julgar toda a legislação penal brasileira – desde que estivesse nas condições estabelecidas no artigo 9º do código.
Acampamentos golpistas se espalharam em locais administrados pelas Forças Armadas, como na frente de quartéis do Exército em todo o Brasil, com pedidos de golpe de estado e intervenção militar – o que é crime. O senhor acredita que a Justiça Militar poderia ter atuado para evitar que aquilo persistisse?
Realmente, não é normal acontecerem acampamentos como aqueles, pregando intervenção. Intervenção militar é crime, nós sabemos. Então, não podemos aceitar isso. Mas temos que lembrar que aquelas pessoas acampadas eram seguidores do governo Bolsonaro.
Não vou dizer que era uma política de governo, mas aquela gestão tinha os acampamentos com uma orientação, defendia que as pessoas estavam ali democraticamente, as definiam como ‘patriotas’. Se fosse apenas para manifestar suas opiniões, tudo bem, mas tínhamos faixas propondo intervenção. Realmente, isso acirrou os ânimos.
Depois, me parece que não houve uma liderança, mas é difícil entender como eles montaram toda aquela estrutura, com tantos ônibus, para aquele dia [8 de janeiro] se não havia uma organização… de qualquer forma, se houve realmente alguma coisa, foi muito mal planejada. Hoje em dia, nós temos que levar em conta que o mundo evoluiu, e evoluiu muito, então não havia apoio popular, nem internacional, a uma ideia de golpe.
Nas semanas seguintes, houve um impasse sobre quem julgaria militares eventualmente ligados ao ataque. Houve tratativas entre STM e STF, para que se definisse a Justiça Comum como responsável por esse julgamento?
Os crimes contra a ordem política e a ordem social são de competência da Justiça Comum, como diz a Constituição. Não houve nenhuma conversa [entre as Cortes], porque tudo foi definido dentro da lei. Nosso Ministério Público [Militar] estava levantando alguns dados, tinha iniciado alguns processos administrativos, mas, depois, o MPM enviou todos aqueles processos para o Supremo.
O ministro [do STF] Alexandre de Moraes fez uma fundamentação perfeita, colocando o papel da Justiça, mostrando que os locais onde houve vandalismo não eram sujeitos à administração militar. Com isso, conseguimos pacificar essa posição. Era uma coisa que as pessoas não entendiam – como militares podem ser julgados na Justiça [Comum]? Isso é possível desde que um militar cometa um crime comum, da mesma maneira que civis podem ser julgados na Justiça Militar se cometerem um crime militar.
Como a decisão de manter o caso como um todo – incluindo a possibilidade de julgar militares envolvidos – reverberou no meio militar? Houve críticas ou ataques contra o STM?
Houve gente que dizia: “os militares serão ‘sujeitados’, julgados pela Justiça Comum”? Mas estava dentro da lei, seguindo o devido processo legal. Houve uma revolta nas redes sociais, quiseram nos colocar contra o STF, o que não era verdadeiro. Apenas as narrativas no campo virtual estimulavam isso – houve algumas ‘sementes’ plantadas dentro das Forças [Armadas], mas não vingaram.
[No 8 de janeiro] tivemos um vandalismo que, pelas pesquisas que vimos, foi repudiado por algo em torno de 90% da população brasileira. Não foi criado nenhum subterfúgio para haver um julgamento militar. Tudo foi feito dentro do nosso direito democrático, seguindo o processo penal democrático. Eu acho que isso foi uma coisa muito boa que aconteceu: julgarmos de acordo com a nossa lei, de acordo com a constituição do nosso país.
O senhor e outras autoridades têm defendido que o 8 de janeiro consolidou a democracia e reforçou a necessidade dos militares se afastarem da política no Brasil. Há outras lições para as Forças Armadas após a crise golpista?
Ficou bem claro que os acampamentos foram tolerados por orientação dos chefes [militares], porque o governo [Bolsonaro] entendia que aquilo era um movimento pacífico… esse era o entendimento que era transmitido pelo próprio governo para as Forças [Armadas].
Mas não podemos ver o 8 de janeiro isoladamente. Temos de ver que, na história, não é papel dos militares atuar na política. As Forças Armadas têm um papel muito importante para o país: defender a nossa soberania. Então, não é para se confundir, as Forças Armadas têm que estar subordinadas ao poder civil. Até comentei noutro dia: qual foi o único ministério que não teve uma equipe de transição? O Ministério da Defesa. Isso porque temos nossas competências bem definidas pela Constituição. A cada quatro anos, fazemos uma estratégia para trabalhar uma política de defesa nacional, essa estratégia política é levada ao Congresso Nacional, e assim por diante.
Muito se fala da necessidade de despolitização dos quartéis e das Forças Armadas. Com mais de um ano de governo Lula, o senhor enxerga avanços nessa questão?
Hoje, nós temos três comandantes que estão fazendo um belíssimo papel, mas ainda continuam essas narrativas nas redes sociais – tem gente batendo em um, batendo em outro, falando mal… esse discurso de ódio não faz parte da nossa índole, da índole do povo brasileiro. As narrativas das redes sociais ainda são muito fortes, isso traz um prejuízo muito grande para a nossa nação. É como disse o ministro Flávio Dino em sua sabatina para o STF no Senado: o mundo virtual não é uma terra de ninguém. O mundo virtual é igual ao mundo real, você não pode fazer o que quiser… tudo tem de ter um limite.
Agora, o fato de ter havido um presidente [Jair Bolsonaro] que foi militar gerou uma confusão, que seria um governo militar. Não era um governo militar. Naturalmente, tivemos muitos militares participando daquele governo porque o presidente escolheu aquelas pessoas da sua confiança, e como ele tinha um relacionamento com muita gente, com militares ‘quatro-estrelas’, alguns eram seus companheiros de turma, ele acabou levando muita gente para dentro do governo. Nós vimos que isso não é saudável.
Acho que a maior lição que tiramos é que nós, militares, temos de voltar ao nosso papel constitucional – um papel sublime, que é defender a pátria, garantir os poderes constitucionais. Se as nossas Forças Armadas se desorganizam, elas perdem a capacidade e a competência de defender a pátria, o que põe em risco a soberania do Estado e a estabilidade da ordem democrática. Temos de ter muito cuidado com tudo isso. Mas eu tenho muita esperança de que essas coisas estão sendo solidificadas. Veja: não houve nenhuma reação contra a proposta de que militares não devam estar envolvidos na política. Nenhuma. Então, acho que estamos caminhando para uma pacificação. Ainda estamos lutando, mas não está consolidado porque não é algo simples de se fazer.
Parte da sociedade questiona o compromisso dos militares com a democracia pela falta de punição a oficiais que se envolveram em problemas nos últimos anos, especialmente durante a presidência de Bolsonaro. Houve o caso do ex-ministro da Saúde e general do Exército Eduardo Pazuello na pandemia, a crise golpista e desdobramentos do 8 de janeiro. Qual sua posição sobre isso?
Peguemos o caso do 8 de janeiro, talvez seja o mais emblemático. Nós tivemos a CPMI, o instrumento investigativo que o Congresso tem, que dá condições de realmente levantar os fatos e propor uma denúncia – não digo uma condenação, porque o julgamento é posterior. Isso foi feito, houve bastante discussão e debate, mas todos foram adiante e devem ser investigados pelo Ministério Público [Federal].
Acredito que o Ministério Público está investigando, descobrindo até que ponto houve crimes – porque não há julgamento sem denúncia, que é realmente onde se configuram os indícios. É na denúncia que identificamos se há crime, se há autoria. Não é uma situação fácil para o Ministério Público porque, para denunciar, tem que ter provas, e no caso do 8 de janeiro ainda não houve decisões, [as investigações] estão em curso.
Agora, ao longo do governo [Bolsonaro], tome o caso do Pazuello: ele era um militar da ativa mas estava em cargo político, e as coisas se misturam um pouco. Fica difícil você definir até que ponto ele está cometendo um crime, uma indisciplina, se ele é político ou militar. Uma hora ele respondia como militar, outra como político. Surgiu a dúvida, ele estando em um comício [de Jair Bolsonaro], mas ele também era ministro, era assessor do presidente. É uma situação que fica difícil você dizer se ele está errado ou certo, se deve ou não ser condenado. Criou-se essa ‘simbiose’, havia um limiar, algo que não ficava muito claro. Por isso que não é bom que o militar esteja na política, como todos nós estamos defendendo a essa altura do jogo.
São ensinamentos que trazem muito amadurecimento, é tudo um processo. Vimos que ao longo do século passado os militares sempre estiveram presentes nas revoltas, e agora estamos trabalhando para que isso não aconteça, para que não se repita, porque não é o certo. Não é só a sociedade brasileira que não aceita mais isso: o mundo não aceita mais aventuras de ditadura. Nenhum órgão multilateral aceita isso. Mas o ensinamento maior é esse: olha, vamos lá, cada um no seu ‘quadrado’.
Após decisão do STF em 2017, a Justiça Militar tem disponibilizado áudios gravados durante julgamentos do STM no período da Ditadura Militar. Mas tem havido relato de problemas na disponibilização do material, estariam faltando alguns áudios. Ainda restam muitos materiais para serem divulgados? Quando pretendem concluir isso?
Em 2017 iniciamos um processo de digitalização de todos os nossos processos, que vamos concluir neste ano. Já determinamos que tudo, desde 1808, que trata da nossa história, absolutamente tudo tem que ser divulgado. As pessoas que têm interesse no tema, acadêmicos, historiadores, curiosos, todos vêm aqui e pesquisam o que desejam. O que acontece é que, naquela época [da ditadura], as gravações não tinham a qualidade que têm hoje. Então, há muitas gravações em que praticamente não se aproveita nada – pela qualidade do material, ou pela ação do tempo. Às vezes a pessoa falava e o microfone não captava, né? Mas nós já mandamos verificar esse problema, queremos colocar tudo à disposição do público. A memória tem que ser colocada como ela de fato é.