Em um evento fechado para empresários em Nova York (EUA), o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes declarou que “a democracia foi atacada no Brasil, mas sobreviveu”.
As falas contrastam com as cenas observadas do lado de fora do encontro, onde ministros do STF e quem mais passasse pelo local eram constrangidos, xingados e chegavam perto de serem agredidos do portão até o automóvel.
Se a democracia sobreviveu, ela parece bastante avariada, como um soldado que volta do campo de batalha sem um olho e com a perna gangrenada.
Afinal, se extremistas liderados por gente como Allan dos Santos fazem isso com juízes, imagina o que acontece no rés do chão das pequenas e grandes cidades brasileiras –como Foz do Iguaçu, por exemplo. Pois é.
Jair Bolsonaro (PL) anda sumido, mas não vai sair de cena tão facilmente.
Aqui e ali já surgem diagnósticos sobre quão avariado sai o país ao fim de quatro anos de ataques ininterruptos contra as instituições –dos responsáveis pela campanha de vacinação ao presidente do Tribunal Superior Eleitoral.
Um desses diagnósticos foi realizado pelo cientista político alemão Kurt Weyland em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo.
Especialista em populismo, o professor da Universidade do Texas, nos EUA, afirma que Bolsonaro não concluiu seu projeto autoritário porque assumiu com uma base de apoio frágil, liderou um governo caótico, que privilegiou a lealdade de aliados em detrimento de especialistas, e bateu no muro de instituições capazes de enfrentar o tranco e saírem ilesas.
Tudo isso, segundo Weyland, tendo de lidar com um líder ainda mais populista e extremista do que o de outros países com experiências similares – ele cita a Hungria de Viktor Orbán, por exemplo.
A análise parece fazer sentido apenas até a segunda página.
Como muitos, o especialista lança o olhar sobre o contexto brasileiro pela ótica de uma guerra de combate, em que o presidente lança bombas sobre as instituições, arromba portões, esfacela a oposição e determina como será a vida de seus habitantes dali em diante.
Weyland diz, por exemplo, que os militares brasileiros “não queriam apoiar tanto Bolsonaro para não parecer República das Bananas" e que em instituições como o Congresso não houve prejuízo em suas funções de freios e contrapesos.
Talvez o professor não tenha observado os tuítes e participação de militares, alguns de alta patente, em manifestações políticas em defesa de seu comandante-em-chefe. O aparente receio de converter o Brasil num bananal não constrangeu os generais Braga Netto e Hamilton Mourão de se candidatarem a vice-presidente na chapa do capitão. Nem demoveu os chefes das Forças Armadas da ideia de endossar teses golpistas a respeito das urnas eletrônicas ou se prestarem a seguir a cartilha do presidente negacionista no comando do Ministério da Saúde durante uma pandemia.
O especialista acredita que Bolsonaro não conseguiu reprimir a oposição, não interferiu na imprensa nem limitou a liberdade de reunião. “Não houve um único oposicionista preso”, sentencia.
Podemos dormir tranquilo, então?
Melhor não.
A análise do professor não leva em conta que as armas de Bolsonaro não são o porrete, como fizeram seus congêneres no passado ou mundo afora, mas o envenenamento.
Ninguém precisa mandar fechar jornal ou prender jornalistas quando a máquina de propaganda de um grupo político passa anos intoxicando o debate público com todo tipo de armação e deslegitimação do trabalho dos profissionais de imprensa. Basta vender a ideia de que valores, modos de vida e, sobretudo, a vontade popular encarnada pelo mito salvador estão em risco diante de uma elite política, intelectual e econômica corrupta, perversa e mal intencionada. (Uma resposta recorrente de quem caiu nesse conto é o ataque a jornalistas perguntando quanto estamos ganhando para defender políticos A ou B ao criticar o atual governo).
Como presidente, Bolsonaro passou quatro anos pingando veneno a conta gotas no sistema de votação eletrônica, na Justiça Eleitoral, nos partidos de oposição e na imprensa indisposta a dobrar a espinha para seu projeto.
O resto do trabalho quem faz não são os seguidores fanatizados e alimentados à base da desinformação por grupos que vendem polarização e violência como solução aos problemas nacionais.
É o que levou tanta gente a ser constrangida, agredida, silenciada ou mesmo morta durante a campanha.
E que leva ministros do Supremo a passarem apuros em sua viagem a NY (só o fato de eles estarem ali a convite de grupos empresariais já diz muito sobre a fragilidade do sistema de pesos e contrapesos do país, mas este é outro assunto. Ou não).
Seria interessante, ao analisar o caso brasileiro, que Weyland recuasse um pouco no tempo para rever a sentença de que nenhum oposicionista foi preso no país.
Lula (PT) em 2018 só não concorreu porque foi condenado à prisão em tempo recorde em meio a processos viciados e posteriormente anulados pelo STF.
Não, não foi Bolsonaro quem mandou prender o já então opositor, mas seu futuro ministro da Justiça, com quem a dobradinha ficou evidente ao aceitar o cargo na Esplanada e também trabalhar como consultor de debates na campanha de 2022.
Outros líderes foram presos ao longo de processos controversos que antecederam a campanha de 2018 e saíram de cena trucidados. Lula é antes uma exceção do que a regra.
O Congresso em que o professor observa a lataria ilesa foi o mesmo que permitiu ao atual presidente rasgar as leis eleitorais e o arcabouço fiscal para se reeleger na marra. Ele espalhou veneno por onde passou ao instalar aliados terrivelmente leais no Judiciário e nos órgãos de investigação, de onde recebeu blindagem, complacência e a garantia de que no Brasil só professores, líderes comunitários, jornalistas críticos e outras categorias seriam monitoradas, vigiadas, agredidas e punidas a prestações.
Sim, tudo isso foi derrotado em parte na disputa presidencial, mas sobrevive com a emergência de seguidores e novos líderes em governos estaduais e no Congresso.
As marcas do pneu desse trator ainda estão expostas para quem tiver olhos para ver.
A democracia no Brasil não morreu, mas não passa bem.