A principal delas é o combate à Covid-19. Embora a pandemia afete o mundo inteiro, a prioridade de Biden foi de política doméstica: vacinar 100 milhões de americanos nos primeiros 100 dias de governo. O prazo não foi gratuito. Se espelhava em Franklin D. Roosevelt (1933-1945), que fixou os primeiros 100 dias como marco para presidentes dos EUA ao lançar com sucesso os programas iniciais do New Deal, plano que recuperou a economia americana após a crise de 1929. Depois de bater a meta inicial nos 58 dias após a posse, Biden dobrou a aposta para 200 milhões de doses em 100 dias e cumpriu o objetivo oito dias antes do prazo.
Mas há quem espere que esse cenário possa beneficiar a América Latina antes disso. Na segunda-feira (26), o governo Biden anunciou que vai compartilhar com outros países os imunizantes comprados da Oxford/AstraZeneca assim que seu uso for autorizado pela FDA, a agência de vigilância sanitária dos EUA. Isso significa que cerca de 60 milhões de doses podem ficar disponíveis nos próximos meses, ampliando a oferta inicial feita em março de enviar ao México e ao Canadá cerca de 4 milhões de doses.
"Essa situação de melhora interna relativa permitiu aos EUA começarem uma ofensiva da diplomacia da vacina”, afirma Gonzalo Paz, professor-adjunto do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade Georgetown, em Washington.
Já a russa Sputnik V teve o uso rejeitado pela Anvisa no Brasil, mas começou a ser produzida na Argentina, e também é usada na Bolívia, Guatemala, Guiana, Honduras, México, Nicarágua, Paraguai e Venezuela. O Paraguai, único país sul-americano que ainda reconhece Taiwan como “verdadeira China”, estuda mudar sua aliança para Pequim para obter acesso às vacinas chinesas.
Segundo Santoro, há chances de os EUA adotarem políticas de apoio no combate à pandemia para o México, América Central e Caribe, “ou um esforço para manter o Paraguai vinculado a Taiwan”, mas não uma medida ampla para toda a região. O motivo é o fato de que a América Latina não é uma prioridade da política externa dos EUA.
“Os americanos estão fazendo agora um grande esforço para a Índia, que mergulhou num pesadelo pandêmico terrível. Estão preocupados com a Índia porque ela é realmente uma aliada-chave. Talvez a parceira mais importante dos EUA na Ásia, juntamente com o Japão, para fazer esse contraponto a uma China que está em ascensão”, diz o professor da UERJ.
Para Renato Flôres, diretor do Núcleo de Prospecção e Inteligência Internacional da FGV, mesmo que os EUA tentem avançar na América Latina com a diplomacia da vacina, o esforço viria tarde em comparação às ações já implementadas pela Rússia e, principalmente, pela China. Além da vacina, Pequim também é um fabricante-chave de equipamentos hospitalares e insumos médicos.
“A dependência da China e a carga de boa vontade que investe, obviamente para amparar sua expansão, tem sido muito grande e notória. E não vejo condições dos EUA atuais de conter isso”, completa. Michael Shifter, presidente do centro de análise Diálogo Interamericano, concorda.
“Avisos pontuais sobre os motivos chineses ou seu comportamento predatório tendem a fracassar numa região desesperada por alguma ajuda, e infelizmente o governo Biden tem sido lento para responder e enfrentar o desafio chinês [na América Latina].”
No geral, Shifter lembra que enquanto a forma como Biden lida com a pandemia é bem avaliada pelos americanos, o mesmo não pode ser dito da recente crise migratória na fronteira sul, que envolve o vizinho México e os países da América Central. "Essa questão se tornou sua principal vulnerabilidade política", diz o presidente do centro de análise.
"Há um aumento da pressão para Washington lidar com essas questões de uma forma consistente com os valores democráticos e os direitos humanos, ao mesmo tempo em que mantém em mente a soberania dos EUA e os requisitos de segurança", complementa Farnsworth. Em resposta, a vice Kamala Harris planeja viajar para o México e Guatemala em junho para tentar encontrar soluções para o problema.
Apesar de a pandemia ter forçado Biden a privilegiar mais a política doméstica dos EUA, incluindo com um pacote de estímulos de US$ 1,9 trilhão para impulsionar a economia do país, o presidente americano voltou ao Acordo de Paris e promoveu uma iniciativa internacional que simbolizou o repúdio à postura unilateral e negacionista do antecessor: a Cúpula de Líderes sobre o Clima, que reuniu virtualmente 40 países entre os dias 22 e 23 de abril para fomentar compromissos ambientais.
“A cúpula reordenou as prioridades de política externa dos EUA em nível global, buscando soluções multilaterais em vez de ações individuais alavancadas pela ameaça de sanções”, avalia Farnsworth.
Ao reposicionar os EUA nesse trilho, Biden mira oportunidades internas, como o desenvolvimento de uma linha de investimentos, negócios e infraestrutura relacionados a uma economia verde, afirma Flôres. Rubens Barbosa, ex-embaixador do Brasil em Washington, concorda e afirma que Biden também busca reconstruir as relações com a Europa e encontrar pontos de convergência com a China “para atenuar os pontos de confronto que vão exercitar ao longo das próximas décadas”.
“Contudo, o meio ambiente não precisa ser um problema para o Brasil. É antes o contrário: a melhor carta internacional que o país tem para exercer influência internacional, atrair investimentos e firmar parcerias no campo da economia verde.”
Para Barbosa, os dois países passam por três fases na relação desde a posse de Biden. A primeira foi a de estímulo à cooperação, exemplificada por troca de cartas num gesto de aproximação depois do apoio do presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, à reeleição de Trump. A segunda teve início com a reunião virtual sobre o clima, em que o governo brasileiro “começou a mudar sua política ambiental pelo menos no papel”, diz.
Em discurso no evento, Bolsonaro prometeu duplicar os recursos de combate ao desmatamento e antecipou de 2060 para 2050 o fim da emissão de gases estufas. A terceira será a da negociação bilateral, quando o Brasil terá de apresentar resultados para que a relação possa avançar, diz Barbosa. “Vejo dificuldades nessa fase porque, além do meio ambiente, na relação com o Brasil vai entrar também a questão da democracia, dos direitos humanos”, afirma.
Para Shifter, as diferenças entre EUA e Brasil nas questões ambientais e em outras, incluindo direitos humanos, são “muito difíceis, senão impossíveis, de superar”. Por isso acredita que, enquanto Bolsonaro for presidente, o relacionamento com os EUA tende a ser frio e distante, mas não abertamente hostil pelo fato de o Brasil ser um país importante no cenário internacional. “Mas é duvidoso que a equipe de Biden invista muito capital político nessa relação”, declara.