Presidente da Associação Médica Brasileira afirmou que "autonomia do médico não da o direito de prescrever remédios sem eficácia" contra a Covid-19
Na terça (23), entidade passou a recomendar que medicamentos do "kit Covid" sejam "banidos" no tratamento do coronavírus
Nesta semana, três pacientes nebulizados com hidroxicloroquina diluída morreram no Rio Grande do Sul
O novo presidente da Associação Médica Brasileira (AMB), o médico César Eduardo Fernandes, afirmou nesta quinta-feira (25) que a "autonomia do médico não dá o direito de prescrever remédios ineficazes" contra a Covid-19.
"Eu acho que o princípio do trabalho do médico – que eu acho válido, merece todo o nosso respeito - é dar autonomia de decisão ao médico. Mas essa autonomia não lhe dá, a meu juízo, o direito de fazer uso de medicações que não tenham eficácia", afirmou Fernandes em entrevista à Globonews.
Na terça-feira (23), a Associação passou a recomendar que medicamentos defendidos pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) no chamado "kit Covid" — que incluem drogas neficazes contra o coronavírus como a hidroxicloroquina e a ivermectina — sejam "banidos" do tratamento da Covid-19.
O documento, um boletim do Comitê Extraordinário de Monitoramento Covid-19, organizado pela AMB, que conta com o apoio de sociedades especializadas e de associações locais dos estados, ainda defende o isolamento social e pedem medidas para acelerar a compra do chamado "kit intubação".
"Reafirmamos que, infelizmente, medicações como hidroxicloroquina/cloroquina, ivermectina, nitazoxanida, azitromicina e colchicina, entre outras drogas, não possuem eficácia científica comprovada de benefício no tratamento ou prevenção da COVID-19, quer seja na prevenção, na fase inicial ou nas fases avançadas dessa doença, sendo que, portanto, a utilização desses fármacos deve ser banida", diz um dos trechos do documento.
Nesta quinta, Fernandes ainda avaliou que, se pacientes receberem uma receita com os medicamentos do "kit", vale buscar uma segunda opinião.
"A meu juízo, se ele está sendo acompanhado por esse médico e recebeu essa orientação, eu creio que valeria ele ouvir uma outra opinião. Não me sinto nem confortável para dizer 'não siga a orientação do médico que lhe deu'. A minha opinião é que ele não deve tomar essas medicações, mas eu não quero ser leviano", explicou.
Outro tratamento sem eficácia comprovada em casos da Covid-19 que ganhou repercussão após as falas do presidente Bolsonaro, é o uso da hidroxicloroquina inalável. O recurso experimental é feito por meio da nebulização da droga diluída em soro fisiológico.
Três pacientes com Covid-19 que passaram pelo tratamento morreram em Camaquã, no Rio Grande do Sul, entre a útlima segunda-feira (22) e esta quarta-feira (24).
Na sexta-feira (19), Bolsonaro pediu para participar ao vivo do programa de uma rádio de Camaquã, no Rio Grande do Sul, para elogiar o tratamento experimental e defender a médica Eliane Scherer, que já estava desligada do hospital onde receitava o experimento, embora seguisse atuando na ala privada da instituição.
A médica foi a responsável por administrar a técnica no Hopistal Nossa Senhora Aparecida, onde os pacientes estavam internados.
De acordo com a unidade, a medida vem contribuindo para a piora da saúde dos infectados com a Covid-19. Scherer estava utilizando o procedimento experimental e sem comprovação científica em pacientes da emergência.
O primeiro posicionamento da AMB é de julho de 2020. Na época, a entidade disse que "o derby político em torno da hidroxicloroquina deixará um legado sombrio para a medicina brasileira, caso a autonomia do médico seja restringida, como querem os que pregam a proibição da prescrição da hidroxicloroquina".
Depois de analisar evidências científicas, o grupo decidiu, de forma unânime, que elas não sustentavam o uso da hidroxicloroquina e outros medicamentos do "kit".
"Em tratamentos farmacológicos e médicos, nós temos que nos basear, primeiro, no que chamamos de não maleficência, ou seja, de que a medicação ou o procedimento não traga agravos à saúde da pessoa. Em outras palavras, da segurança", explicou na ocasião.
O uso da hidroxicloroquina pode trazer efeitos colaterais sérios, como a arritmia cardíaca. Em Campinas (SP), médicos confirmaram, também na terça-feira (23), o primeiro caso de hepatite medicamentosa relacionada ao "kit Covid". Complicações em pacientes também já haviam sido vistas na Paraíba em janeiro.
O chamado "kit covid" ou "tratamento precoce", na verdade, contribui para aumentar o número de mortes de pacientes graves, disseram à BBC News Brasil diretores de Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) de hospitais de referência.
No Brasil, por conta disso, um grupo de ex-presidentes do Conselho Federal de Medicina e dois conselhos estaduais (Cremesp, de São Paulo, e Cremerj, do Rio) divulgaram cartas, janeiro deste ano, pedindo que as direções atuais notifiquem os médicos que pregam ainda o uso de cloroquina e derivados, normalmente receitadas no contexto do que o governo chama de "tratamento precoce".
Para o infectologista Mauro Shechter, professor titular da UFRJ, os estudos clínicos mais robustos todos apontaram em uníssono para o fracasso da hidroxicloroquina contra a Covid-19.
"Esse assunto acabou", disse o médico, que vem compilando literatura técnica sobre o tema desde o início da pandemia. "Eu desconheço qualquer outra droga cuja ineficácia tenha sido comprovada e que tenha sido alvo de tanta insistência em testes clínicos depois">
Com sociedades médicas e centros de referência emitindo recomendações contrárias ao uso da droga, infectologistas brasileiros reclamam de omissão por parte do CFM. Sob argumento de que os médicos são autônomos para prescrever medicamentos a seus pacientes, o órgão de classe não emitiu recomendação contrária nem notifica os médicos que adotaram a prática.
"Conclamamos, por ser um imperativo ético, que o CFM oriente a população médica (...) evitando o uso de condutas terapêuticas sem respaldo científico; bem como a disseminação de informações falsas sobre a doença", afirmaram em carta cinco ex-presidentes da entidade.