Após meses analisando dados de pacientes intubados no Brasil em decorrência da Covid-19, o pesquisador da Fiocruz Fernando Bozza afirmou à CNN que o país "está caminhando para o abismo". O médico intensivista conduziu um estudo no ano passado que concluiu que 80% dos pacientes de Covid intubados no Brasil morreram — a média mundial é de 50%.
A pesquisa foi publicado na revista médica The Lancet Respiratory Medicine. Agora, com a segunda etapa do estudo em andamento, em que analisa dados de 2021, Fernando Bozza já constata um cenário bem pior do que o pico da primeira onda.
“Os dados que estamos vendo são horríveis, estamos evoluindo para uma situação não só pior do que a anterior como ainda mais dramática. Todo o país está caminhando para o abismo e teremos em breve um colapso geral do sistema de saúde nacional”, afirmou o pesquisador, que é chefe do Laboratório de Pesquisa Clínica em Medicina Intensivista do Instituto Evandro Chagas, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Bozza explica que a alta letalidade de pacientes intubados foi consequência de três fatores: falta de capacitação dos profissionais da linha de frente; concentração de leitos de UTI nas capitais e, portanto, distante de muitos municípios, o que faz com que muitos pacientes cheguem já num quadro muito grave; além das fake news de possíveis tratamentos para a doença.
Além disso, o fato das pessoas terem demorado a procurar hospitais no início da pandemia contribuiu para a alta taxa de mortes pós intubação. Isso porque os pacientes já chegavam em um estágio muito grave e difícil de se reverter, especialmente na região Norte do Brasil, onde os leitos de UTI estão muito concentrados nas capitais e as distâncias entre os municípios são muito grandes.
Até por isso, a taxa de letalidade entre pacientes intubados é maior nas regiões Norte e Nordeste. Enquanto no Sul e Sudeste a taxa é de 76,8%, abaixo da média nacional, mas ainda bem maior que a mundial. No Norte, essa taxa é de 86,7%, no Nordeste de 83,7% e na região Centro-Oeste de 83,6%.
“Essas taxas são reflexos das diferenças e fragilidades do sistema de saúde brasileiro. As equipes têm dificuldade de lidar com a alta demanda, a carga de trabalho é muito grande e faz com que a qualidade do serviço caia, pois esses profissionais estão esgotados física e mentalmente”, concluiu
No momento, quando todos os estados do Brasil estão colapsando, o médico avalia que o "Brasil falhou em não aprender com a pandemia no ano passado, perdeu tempo focando em coisas irrelevantes e deixando de assimilar práticas bem sucedidas aplicadas em outros países". Segundo ele, essa taxa de letalidade poderia ser reduzida se tivéssemos aplicados tratamentos que se mostraram eficazes, como o uso de corticoides e ventilação não invasiva precoce.
“O país perdeu um enorme tempo discutindo coisas que não servem para nada como o uso de ivermectina e cloroquina. Não treinamos equipes como deveríamos para conduzir melhor os doentes graves, ventilar melhor esses pacientes e incorporar as evidências que sabemos que funcionam como, por exemplo, corticoides para pacientes que precisam de oxigênio e que podem prevenir que os pacientes sejam intubados, ventilação prona, ventilação não invasiva precoce, ou seja, uma série de medidas que outros países implementaram e que fez muita diferença".
Ao contrário do que aconteceu em 2020, quando tivemos picos diferentes e em diferentes momentos, desta vez o Brasil segue para um "colapso unificado", na avaliação de Bozza. E com essa panorama o médico prevê um número ainda maior de mortes entre pacientes intubados.
Outro ponto apontado pelo pesquisador é a disseminação de falsas informações em relação à doença. Bozza não enxerga outra solução a não ser o endurecimento das medidas restritivas e uma aceleração no Plano Nacional de Imunização (PNI). Ainda assim, mesmo se aumentarmos a capacidade de vacinação, os efeitos serão sentidos apenas no 2º semestre.
“A velocidade de vacinação não vai ter efeito sobre esse momento atual que estamos passando. Esse momento depende de medidas de controle de transmissão. Pessoas em casa. A aceleração da vacinação só vai ter efeito no segundo semestre. É importante acelerar a vacina, mas não será suficiente para mudar o cenário que está se desenhando para os próximos dois meses”, lamentou.
Fernando Bozza também observou que há uma tendência de que haja um aumento de casos graves em pessoas mais jovens, entre 20 e 39 anos, com aumento da mortalidade nesta faixa etária.
“Assim como aconteceu em Manaus recentemente, acontecerá em todo o País um aumento de casos graves em pessoas mais jovens entre 20 e 39 anos, com aumento de mortalidade entre essa faixa etária. Hoje é possível ver também que há mais jovens internados nas UTIs em todo o Brasil, reflexo direto destas novas variantes em circulação e que parecem, de fato, levar a casos mais graves”.
Bozza também criticou a tese de imunidade de rebanho e disse que, inclusive, foi em decorrência da circulação de pessoas nas ruas que tivemos novas e mais poderosas variantes. Um dos exemplos é Manaus, que teve uma primeira onda muito forte e depois teve uma nova onda ainda mais violenta, já com a nova variante em ação.
“Imunidade de rebanho não existe. Quanto mais vírus circulando, mais variantes e mais mutações acontecerão. Hoje somos um dos maiores celeiros mundiais de produção de mutações e variantes desse vírus. Isso acontece porque não fomos responsáveis, principalmente o governo federal, em jogar essa transição para baixo. Quanto mais circulação de pessoas nas ruas, mais facilmente teremos novas variantes do vírus.”