O Brasil atingiu hoje a triste marca de meio milhão de mortos por novo coronavírus.
Entender como chegamos até aqui é um desafio histórico. Para que não se repita. Mas não é o único.
Antes será preciso compreender como evitar que este número se multiplique após estacionar em um platô com média móvel superior a dois mil óbitos.
A história da pandemia é a história de quem perdemos. Amigos, familiares, vizinhos. Pais de amigos. Ídolos e referências da música, do cinema, da literatura, com ou sme histórico de atleta. Do hospital eles telefonaram pela última vez para as pessoas que mais amavam e nunca mais voltaram para casa.
Seu último contato com o mundo foram rostos cobertos por máscaras, toucas e protetores faciais das equipes médicas. Em alguns hospitais, profissionais de enfermagem são hoje orientados a ostentarem os crachás profissionais, para que os pacientes saibam quem está por trás da “armadura”. Alguns gravam vídeos para que os pacientes reconheçam seus cuidadores com a voz e a cara limpa, sem o som e a imagem abafados pelo sistema de proteção.
Meio milhão de pessoas.
Meio milhão.
Pessoas.
Faz pouco mais de 15 meses que a Organização Mundial de Saúde declarou a pandemia. Há pouco mais de um ano, a marca de 30 mil óbitos no Brasil já parecia o auge de uma estatística macabra e documentada por frases, ações e omissões. Estava longe de ser. E ainda seguimos longe do fim.
Jair Bolsonaro recebeu ainda em março de 2020 um estudo apontando que, se algumas medidas não fossem tomadas, o Brasil chegaria ao fim de dezembro com quase 200 mil mortes. Foi o que aconteceu.
Mudar exigia postura. Exigia a defesa enfática de restrições de comportamento social. Algo impensável para quem foi eleito justamente para “conservar” estilos de vida em suposto risco diante de um mundo em transformação —tecnológica, cultural, de identidade, etc.
Bolsonaro deu de ombros para os alertas, demitiu o mensageiro, Luiz Henrique Mandetta, o primeiro de quatro ministros da Saúde, e a roda da tragédia começou a moer sem sinal de que vai parar tão cedo.
Bolsonaro preferiu dar ouvido a outros conselheiros. Partes deles vindos de um suposto aconselhamento paralelo que de dia pintava um mundo colorido e de noite escondia os corpos da tragédia. Ou queria esconder.
Há quase dois meses uma CPI foi aberta no Senado para investigar os crimes e omissões que levaram ao morticínio.
E até agora é difícil entender por que, mesmo diante da possível responsabilização, o maior influenciador digital do país, acaso o presidente da República, continua fazendo e falando exatamente o oposto do que pedem as autoridades sanitárias, desdenhando dos esforços por distanciamento, de higienização constante, do uso de máscara, do estímulo a testagem em massa e da vacinação obrigatória. A estratégia é replicada por gestores e lideranças Brasil afora, figuras públicas e privadas. Chegou aos nossos vizinhos, parentes e amigos entre a cruz da salvação e a espada do negacionismo.
A aposta na cloroquina. A demora em responder para a fabricante da vacina mais promissora. A falta de generosidade em estender a mão para um governador que se desdobrava em uma parceria, ao fim bem-sucedida, com um laboratório chinês para fabricação de um imunizante nacional. Os ataques xenófobos aos parceiros comerciais. Os inúmeros atos estimulando aglomerações. A tentativa de desacreditar os números. O deboche com as vítimas. “Vamos chorar até quando?”. “É preciso enfrentar o vírus como homem, não como maricas”.
O Brasil chega aos 500 mil mortos por covid-19 e sua maior autoridade parece não ter entendido ainda que a pandemia é um desafio histórico, gobal, e não um dilema para sua suposta virilidade, esta que se nega a se dobrar aos cuidados e protocolos sanitários, como se estes fossem sinais de fraqueza. Esse desafio diz respeito ao conjunto da população para a qual falhou em mostrar solidariedade e compaixão.
Tudo porque vislumbrou apenas uma dicotomia insana entre saúde pública e saúde econômica. “Se a economia quebrar acaba o meu governo”, lembra?
Em nome de seu projeto de reeleição, o Brasil se transformou em um celeiro da tese furada de imunização do rebanho. Em vez de anticorpos criamos novas variáveis e, com elas, as condições para o abate.
O negacionismo é a barreira que impede a visualização da tragédia. Há um ano o presidente jurava que a pandemia estava “finzinho”. Seus auxiliares diretos e indiretos prema menos estragos do que uma gripe comum.
Foram desmentidos pelos fatos. Estes fatos formam hoje uma pilha de mortos.
Pela média de estatura brasileira, se pudessem ser enfileiradas as vítimas atravessariam em linha uma estrada entre Curitiba e o Rio de Janeiro.
Em outras palavras, são dez aeronaves como o da Airbus da TAM por dia. Ou 2.500 acidentes aéreos similares desde o começo da pandemia, que já multiplicou por 10 o número de mortos na guerra do Paraguai e por 142 as vítimas da gripe espanhola.
Uma tragédia sem hora para acabar.
Se a perda não pode ser calculada em sua dimensão humana, ela não pode ser esquecida pelo seu assombro numérico. A indiferença mata. Está nos matando.