Chã de Bebedouro, periferia de Maceió. Do alto do mirante local, uma das mais belas vistas da cidade, com um olhar de tirar o fôlego no ecossistema formado pelo complexo estuarino lagunar Mundaú/Manguaba. Na parte baixa da mesma vista encontra-se o Flexal de Baixo, comunidade que ficou isolada de tudo e de todos após o desastre ambiental causado pela Petroquímica Braskem.
A retirada do sal-gema na região por décadas é a principal causa da instabilidade do solo, que provocou, além de danos materiais e financeiros, drásticas rupturas nas relações sociais e o apagamento da memória e do patrimônio imaterial da população local.
E, sob os flashes atentos do repórter fotográfico Thiago Sampaio, dois jovens têm o brilho dos olhos ainda mais realçado pela câmera do profissional, tendo ao fundo a paisagem lagunar no topo do mirante. Os dois são egressos do projeto Digaê!, criado pelo Programa das Nações Unidas para Assentamentos Humanos (ONU-Habitat) e executado em Alagoas desde 2017, dentro do conjunto de ações sociais implementadas pelo Governo de Alagoas.
Essas ações têm como objetivo um futuro urbano mais próspero, sustentável e inclusivo no plano de ação global criado pelo ONU-Habitat para erradicar a pobreza, proteger o meio ambiente e o clima, além de promover vida digna a todos, numa proposta denominada de Agenda 2030.
Um dos objetivos e de enunciado emblemático constante no documento do Programa Visão Alagoas 2030, fruto da parceria entre o Governo do Estado e ONU-Habitat vaticina: “Não deixar ninguém e nenhum lugar para trás”.
A imagem dos dois jovens no mirante virados para o sofrido povo do Flexal confirma o enunciado. Sim, ninguém pode ficar para trás, e nem o lugar de pertencimento deles.
Arthur Felipe e Lucas Aureliano, de 23 e 24 anos, respectivamente, participaram do projeto inspirador Digaê! – um dos vieses da parceria Governo/ONU Habitat. Eles têm a consciência de pertencimento ao seus lugares e não querem que nada fique para trás. A atuação dos jovens foi na Escola Estadual Dr. Miguel Guedes Nogueira, localizada em frente ao mirante.
“Foi um trabalho maravilhoso, que me inspirou a vislumbrar outras atividades”, diz Arthur Felipe, que cursa Jornalismo e no coletivo que integrou no Digaê! com diversos jovens, participou de oficinas de fotografias com estudantes da Escola Estadual Dr. Miguel Guedes Nogueira e as transformou em técnicas de ‘lambe-lambes’ na unidade escolar. A ação também rendeu uma roda de conversa com a garotada sobre a vivência no bairro, ocupação dos espaços públicos.
“Não me entendia como um ser participante da minha comunidade. Não tinha expectativa como cidadão. Hoje tenho outra visão e outra perspectiva depois do Digaê!”, completa Lucas Aureliano, estudante de Engenharia da Agrimensura e Cartográfica e morador da região lagunar, pertinho da escola onde o projeto Digaê foi aplicado.
“Foi um projeto potente na produção do material de comunicação e direito à cidade. Atualmente, depois do Digaê! temos jovens que estão trabalhando em coletivos com atividade no campo da comunicação e intervenções sociais”, afirma Roberto Silva, que foi educomunicador do projeto.
O programa Digaê! - Juventudes, Comunicação e Cidade formou cerca de 80 jovens, de 15 a 24 anos, moradores de 32 grotas de Maceió, em temas relacionados ao direito à cidade, comunicação e projetos comunitários. Por meio de oficinas e mentorias, a garotada desenvolveu diversos conteúdos multimídia e eventos culturais sobre suas memórias, histórias e narrativas relacionadas às grotas.
Uma das principais ações consistiu na realização de oficinas e laboratórios de criação de diferentes linguagens midiáticas - podcast, fotografia, vídeo, lambe-lambe, fanzine e grafite -, que articularam a apreensão e a experimentação das técnicas de produção em comunicação.
Além do Governo de Alagoas e o ONU-Habitat, o Instituto Pólis e a Viração Educomunicação também contribuíram para fortalecer e engajar a juventude das grotas a intervirem em seus territórios.
“Trabalho é referência para o mundo, mas, antes de tudo, para milhares de alagoanos”, diz governador
O governador Paulo Dantas reforça o compromisso do Estado com a agenda de desenvolvimento social. “Ninguém é capaz de fazer uma transformação deste porte sozinho, sem escutar, sem estudar, sem parcerias como esta que temos com o ONU-Habitat. Um trabalho que é referência para o mundo, mas, antes de tudo, referência para milhares de alagoanos que já tiveram suas vidas melhoradas por este olhar, por este planejamento, por este trabalho, que tem como propósito garantir uma vida com acesso aos serviços públicos”, destaca.
“É importante frisar que o nosso compromisso não é com o que já foi feito. Nosso compromisso está apontado para a mudança da realidade que ainda precisa ser transformada, e será, e que é para já. A partir da observação e análise dos dados desta realidade, nós, servidores e gestores públicos, vamos garantir uma série de políticas para dar autonomia aos jovens e adultos, proteção às mulheres e crianças, segurança aos pais e mães de família, e oportunidades a micro, pequenos e médios empreendedores”, completou o governador.
Nova fase do ONU-Habitat já teve início; Digaê! pode se transformar em política pública efetiva
A nova fase da parceria Governo de Alagoas e ONU-Habitat será justamente na região lagunar. Por meio da estratégia de busca ativa (porta a porta), o trabalho agora vai consistir em identificar os chamados “invisíveis” da sociedade ou à margem das políticas públicas do Governo do Estado na região do entorno das lagoas Mundaú e Manguaba.
“Nesta etapa teremos um processo de varredura, de casa em casa, em busca dos invisíveis, das crianças que estão fora da escola e das famílias que estão fora de programas sociais como o CadÚnico ou que não estão recebendo apoio do Programa Cria”, anuncia Alex Rosa, coordenador de Programas do ONU-Habitat.
Essa terceira fase da parceria foi iniciada no primeiro semestre de 2024 e tem como foco a consolidação e a expansão dos esforços pela prosperidade urbana em Alagoas. Entram em pauta - além da metodologia de busca ativa – temas como governança do turismo e cidades inteligentes.
Sobre a continuidade do Digaê!, Alex Rosa afirma que não está prevista uma continuidade do programa nos moldes das fases anteriores, porém, o Governo de Alagoas realiza estudos para que o projeto se torne uma política pública efetiva. “Está em curso um estudo com a Seplag [Secretaria de Planejamento, Gestão e Patrimônio] para a criação de um projeto de lei que transforme o Digaê! em programa de Estado”, completou.
Vida Nova nas Grotas: a inclusão dos esquecidos urbanos ganha o mundo
Outra espécie de “menina dos olhos” da parceria Governo de Alagoas/ONU-Habitat é o programa que no começo tinha o adjetivo “Pequenas”, mas se agigantou e foi abraçado pelo ONU-Habitat. O “Pequenas Obras, Grandes Mudanças”, depois dos ajustes técnicos, virou “Vida Nova nas Grotas”.
E foi no sobe e desce de ladeiras íngremes que o Governo de Alagoas transformou a vida de moradores de 62 grotas da capital, com a entrega de obras de mobilidade urbana. De acordo com o coordenador de Projetos Especiais da Secretaria de Estado de Transporte e Desenvolvimento Urbano (Setrand), Paulo Bandeira, atualmente, o programa está em execução em quatro comunidades e outras 17 serão as próximas a serem atendidas. Além disso, mais 27 grotas estão aptas a participar de nova licitação, perfazendo um total de 110 beneficiadas.
As intervenções nas grotas incluem implantação, reforma e pintura de escadarias, corrimões e pontilhões, pinturas das casas, além da construção de espaços de lazer para as crianças. Isso sem falar na revitalização dos espaços, que impactaram diretamente no comércio local, que, antes, convivia com muita lama e, atualmente, conta com ruas asfaltadas, meio-fio, escadarias e toda a infraestrutura para o atendimento aos clientes. “E tudo isso começou tão pequenininho, inclusive, com o nome de Pequenas Obras”, lembra Paulo Bandeira.
As tratativas com o ONU-Habitat foram iniciadas em outubro de 2017. Procurada pelo Governo do Estado, a agência internacional se interessou pela proposta alagoana e topou o desafio. Na largada, foi inaugurado um escritório em Maceió. Um calhamaço do projeto foi entregue ao Governo do Estado, a quem coube a missão de mapear as condições de infraestrutura, drenagem de água, mobilidade urbana, padrão construtivo, perfil socioeconômico, grau de alfabetização e percepção de problemas nas grotas. Também foi dado o start para o antigo nome “Pequenas Obras, Grandes Mudanças” se aposentar e dar lugar ao “Vida Nova nas Grotas”.
Com a chancela da Organização das Nações Unidas para Assentamentos Humanos (ONU-Habitat), a ideia que nasceu “pequena” começou a alçar voo e ganhar o mundo. “Começamos indo à Colômbia verificar uma experiência muito parecida com a nossa realidade. Mais tarde, o ONU-Habitat chegou e nos subsidiou com pesquisas e dados”, completa Bandeira. Com base no mapeamento do Censo 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), inicialmente, 74 grotas de Maceió foram identificadas e incluídas no novo projeto.
O resultado da parceria com o ONU Habitat, com o Vida Nova nas Grotas, rendeu ao Governo do Estado ótimos frutos e até premiações internacionais:
- Concurso Gobernarte: A Arte do Bom Governo – Prêmio Eduardo Campos, concedido pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), em 2019;
- Prêmio World Smart City Awards 2020, na categoria “Qualidade de Vida e Inclusão”, concorrendo com mais de 50 países. A premiação, a mais importante da área no mundo, foi anunciada em cerimônia realizada em Barcelona, na Espanha. O “Vida Nova nas Grotas” foi o único projeto brasileiro vencedor do prêmio.
- Ainda em 2020, foi apresentado no Fórum Mundial das Cidades, realizado pela ONU em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos;
- Em 2021, concorreu como finalista ao Prêmio Excelência em Competitividade, iniciativa brasileira realizada pelo Ranking de Competitividade dos Estados, do Centro de Liderança Pública (CLP).