POR MAGALI CUNHA...
Vácuo. Os evangélicos ocuparam o espaço deixado pelas esquerdas, mas com proposta política radicalmente distinta - Imagem: Mauro Pimentel/AFP. Um aprendizado para quem acompanha o processo de intensa propagação de desinformação (as populares fake news), nas diferentes mídias no Brasil, é que o uso deste recurso como estratégia de campanha é um caminho sem volta. É possível afirmar isto dada a continuidade e a repetição de temas desinformativos nos discursos pela captação de votos nos pleitos nacionais-estaduais (2018 e 2022) e municipais (2020).
Não que esta prática seja uma novidade – definitivamente não é. Sempre se usou de mentiras para captar votos ou destruir a reputação de adversários. O novo é tanto a intensidade da propagação possibilitada pela era digital, quanto o conteúdo das falsidades e enganos, meticulosamente desenvolvido para alcançar as pessoas. Busca-se oferecer temas que afetem, isto é, que interajam com as visões que as pessoas têm sobre o mundo e o que acontece ao seu redor e as movam a atitudes, como o compartilhamento das mensagens (para que viralizem), a rejeição de certas personagens e o voto em outras.
Por isso, não se pode perder de vista as razões para o amplo alcance de conteúdo desinformativo em ambientes religiosos: a dimensão da crença, o sentido de pertença, da credibilidade na comunidade e nos líderes, e o apego a aplicativos de mensagens. O WhatsApp tornou-se um novo ir à igreja, que ocupa intervalos de participação presencial por meio dos grupos virtuais ou mesmo substitui a presença em atividades eclesiais.
Com base neste quadro, pesquisas dentro e fora do Brasil, indicam que grupos cristãos estão entre os responsáveis pela vitória de Donald Trump, nos Estados Unidos (2016), e de Jair Bolsonaro, no Brasil (2018), à Presidência da República, com participação ativa na propagação dos conteúdos falsos que os afetaram e alimentaram a campanha desses candidatos. São processos paradigmáticos. As campanhas eleitorais no Brasil para os municípios, em 2020, e para cargos majoritários, incluindo o de Presidente da República, em 2022, seguiram na mesma direção.
Há ações de enfrentamento que contribuem para que o eleitorado esteja mais atento e menos vulnerável ao uso de desinformação como estratégia de campanha: múltiplos projetos de enfrentamento à desinformação, vários deles reunidos na Rede Nacional de Combate à Desinformação (RNCD); as intensas atividades das agências e projetos de checagem de conteúdo; as diferentes regulamentações da Lei Eleitoral, pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para inclusão do regras sobre a propaganda eleitoral, e tratam diretamente do tema das “fake news”.
Tudo isto mostra o que alguns estudiosos chamam de “expressivo avanço” no Brasil, no tocante ao enfrentamento da desinformação nos últimos processos eleitorais, a despeito da falta de vontade política do Poder Legislativo de atuar contra este mal antidemocrático. O exemplo mais recente é a inviabilização, pela Câmara de Deputados, do PL 2630/2020, a chamada Lei das Fake News, aprovada no Senado, que busca responsabilizar as plataformas digitais pela veiculação de conteúdo falso, enganoso e estimulante de ódio e violência.
Tendo em vista o processo eleitoral municipal de 2024 no Brasil para os cargos municipais – Prefeitura e Vereança – importa chamar a atenção para as campanhas, já em curso, que estão fazendo uso de mentiras e falsidades para fidelizar eleitores cristãos. Para isso, apresento um levantamento que desenvolvi, a partir da pesquisa conduzida pelo Instituto de Estudos da Religião (ISER), intitulada “Religião e Voto: uma fotografia das candidaturas com identidade religiosa nas Eleições [Municipais] 2020”, e das matérias publicadas pelo Coletivo Bereia, o único projeto de checagem de conteúdo no país, dedicado ao que circula em ambientes digitais religiosos.
Os dados da pesquisa sobre religião nas campanhas eleitorais em 2020 mostra que as candidaturas com identidade religiosa que fizeram uso de mentiras, falsidades e enganos se revelam amplamente conservadoras e alinhadas à direita política, do ponto de vista numérico. Chama a atenção não ter sido identificado conteúdo desinformativo em material relacionado a candidaturas progressistas e de esquerda. Este elemento corrobora os estudos que vinculam o recurso às fake news para convencer o eleitorado, a grupos religiosos conservadores e fundamentalistas.
Temas referentes à moralidade sexual e ao pânico moral, em 2020, fortemente centrados na infância e na educação, têm forte apelo entre grupos religiosos, foram ressignificados na campanha de 2022 e devem retornar com força em 2024. Desde o segundo semestre de 2023, o Bereia tem verificado mais material publicado sobre educação do que nos anos anteriores (2021 e 2022). A insistente denúncia de que a esquerda no poder vai produzir mais doutrinação marxista e erotizante nas escolas, via ações dos Ministérios da Educação e da Cultura, se materializou, recentemente, em publicações contra a Conferência Nacional de Educação, realizada em janeiro de 2024.
A campanha para as eleições, em 2023, para Conselhos Tutelares, também foi permeada por tais ênfases. O tema seguiu em 2024, com a comoção criada em torno de uma suposta realidade extrema de exploração sexual de crianças na região de Marajó (Norte do Brasil), com acusações de negligência ao atual governo federal, a partir de uma apresentação musical em reality show evangélico, no final de fevereiro de 2024, também reforça esta tendência. O Bereia identificou enganos disseminados nos dois casos.
A indicação do deputado federal extremista Nikolas Ferreira (PL/MG) para a Comissão de Educação da Câmara dos Deputados, em 2024, dá o tom do peso desta temática. Igualmente, o número de proposições parlamentares com foco em educação em 2023, conforme levantamento do projeto de Monitoramento de Projetos de Lei na Câmara Federal, desenvolvido pelo ISER.
Outra ênfase de 2020, que ganhou mais força, em 2022, foi o tema da cristofobia, com terror verbal em relação a perseguição aos cristãos no Brasil, espelhada no que estaria ocorrendo em outros países, com referência a suposta ameaça de silenciamento de sua pregação e fechamento de igrejas, atribuída às esquerdas. Este tema foi fartamente usado pelo governo federal anterior, na captação de apoios. Durante o primeiro ano do governo Lula, “cristofobia” segue sendo usada pela oposição e por políticos com identidade religiosa, quanto criticados por seus ataques públicos a direitos, em especial os que dizem respeito à sexualidade, à reprodução humana e a comunidades tradicionais. Este espelhamento discursivo dá o tom o que deve permear o pleito de 2024.
Para além desses temas que mobilizam especificamente crenças e moralidades religiosas, a estratégia extremista de ataques, com desinformação, à Justiça Eleitoral e ao voto eletrônico no Brasil, incipiente, em 2018, mais intensa, em 2020, e ostensiva, em 2022 e nos anos seguintes, ganhou terreno em espaços digitais religiosos, conforme checagens do Bereia.
Conteúdos que afirmam que as urnas eletrônicas são vulneráveis a ataques hackers, que há interferência na apuração de resultados, que acusam as Cortes Superiores (STF e TSE) de “ditadura”, ao aplicarem a Constituição, têm circulado amplamente desde 2020. A potencialização de tais conteúdos em 2024, como citado acima, com a entrada do dono do X/Twitter na discussão, com acusações de arbitrariedade do STF, nas investigações sobre ataques à democracia brasileira, deu mais força para campanhas de desinformação sobre ações da Justiça Eleitoral em 2024.
Importa, ainda, observar que não é possível asseverar que o uso de fake news como estratégia de campanha condicione votos e determine vitórias eleitorais. Em 2020, derrotas como a do atual deputado federal Marcelo Crivella (Republicanos/RJ), para um segundo mandato na Prefeitura do Rio de Janeiro, depois de farto uso de mentiras e enganos na campanha, contribuem para esta afirmação. Certamente, a análise da eficácia eleitoral deve levar em conta outros fatores combinados a esta questão, como histórico na vida política, interação e credibilidade com eleitores, articulação partidária, alianças, por exemplo.
Uma vez que a prática da desinformação como estratégia de campanha persiste, agora, de forma mais grave, com o uso de inteligência artificial, é preciso o alerta desde já. São dinâmicas que desafiam reflexões e ações de partidos, grupos, movimentos sociais e eleitores, individualmente, que primam pela participação cidadã baseada na justiça e na democracia.