O céu ainda estava escuro no início da manhã de sexta-feira (28/5) quando dezenas de viaturas se perfilaram em frente a Favela Penha Brasil, localizada na Rua Afonso Lopes Viêira, na Vila Dionísia, região da Cachoeirinha, zona norte da capital paulista. Os PMs ali estavam como seguranças de um bem privado, se posicionando para que a reintegração de posse contra 230 famílias, incluindo idosos, crianças e deficientes ocorresse sem transtornos.
A desocupação foi ordenada, no último dia de 2020, pela juíza Paula Fernanda de Souza Vasconcelos Navarro, a pedido da Igreja da Graça de Deus, comandada pelo pastor R.R. Soares. Depois, a pedido da Prefeitura Municipal de São Paulo, a juíza Fernanda de Carvalho Queiroz determinou providências para uma “desocupação segura”, incluindo aviso ao Conselho Tutelar.
A Defensoria Pública de São Paulo pediu a suspensão do cumprimento da ordem de reintegração de posse. O pedido foi negado na segunda instância pelos desembargadores Ricardo Pessoa de Mello Belli, Cláudia Grieco Tabosa Pessoa e Mourão Neto. Na decisão de segunda instância, o relator Ricardo Pessoa de Mello Belli disse que “a protelação do cumprimento da ordem liminar, para aguardo de providências do Poder Público destinadas a promover o assentamento dos réus, não teria outro efeito que não o de agigantar a invasão”
Se do lado de fora alguns policiais conseguiam sorrir, do lado de dentro do terreno de 12 mil m², boa parte de terra batida recheado de barracos de madeira, o semblante das pessoas era de cansaço por noites em claro, além do desespero de não saber como será o amanhã.
Um retrato fiel da desolação podia ser visto no rosto da dona de casa Maria José dos Santos, 62 anos. Solitária, a idosa estava sentada em uma cadeira quando a reportagem se aproximou para ouvir sua história e o porquê daquela solidão naquele momento. “É a primeira vez que estou passando por isso. Não tenho palavras”. Questionada sobre para onde levaria seus poucos pertences assim que o caminhão contratado pela Igreja Internacional da Graça de Deus, proprietária da área e responsável pela ação na Justiça, ela olhou para o céu como se pedisse forças divinas e soltou: “Não sei para onde vou. Talvez para uma nova ocupação. Estou sem dormir. Só Jesus”.
Durante a conversa, explicou o motivo por permanecer sentada e fazer uso de uma bengala durante os poucos minutos que consegue ficar em pé. “Quebrei o pé e minha perna está atrofiando”, diz, apontando as cicatrizes que possui no membro inferior direito. Antes de se despedir, a idosa ainda contou que chegou ao local há dois meses, após cansar de apanhar do ex-marido. “Para casa não volto”, ressaltou.
Enquanto a reportagem conversava com Maria José, um barulho chamava a atenção. Ao olhar mais adiante, um homem batia um martelo contra compensados de madeira. Sua intenção não era fixar estacas, mas remover os objetos que durante seis meses serviram como moradia para ele, sua esposa e sua filha de oito anos. O homem, que trabalhava de maneira rápida, aproveitando os minutos antes da polícia tomar o local e as retroescavadeiras completaram o serviço de demolição, era o ajudante de obra Rodrigo Teixeira Miguel, 27. “Não posso desperdiçar [madeira], depois não tenho como arrumar outra. Único dinheiro que ganho é para sustentar a família”. A habilidade com o martelo só perdeu o ritmo ao ser indagado qual seria o seu destino. “Por enquanto para nenhum lugar, não tenho para onde ir”, para, logo na sequência, voltar ao trabalho de despregar as madeiras.
Se a área pertence a um religioso de vertente evangélica, tantos outros evangélicos das mais diversas denominações, menos abastadas do que a Igreja da Graça de Deus, construíram ali suas esperanças por dias melhores. Um deles era o pastor Edilson de Souza Barreto, 52, revoltado com a postura de seu correligionário rico, o missionário R.R. Soares, líder da congregação que pediu à Justiça o despejo. “Esse é um falso profeta. O que o R.R. Soares está fazendo com as famílias é ser um falso profeta”.
Quando da primeira visita da Ponte à Favela Penha Brasil, a reportagem tomou conhecimento da história de Karine Alcantara Silveira, 41, mãe de um adolescente autista, que tinha como brinquedo três litros de leite envoltos em fita adesiva. Assim como naquele dia, a renda da mulher continua a ser formada apenas pelo benefício de um salário mínimo a qual o jovem tem direito. Em boa parte do despejo, o menino, sempre grudado com a mãe, não estava no local. “Deixei ele dormindo na casa da minha irmã, não é bom isso para ele”. No entanto, assim que acordou, ele quis encontrar Karine, o que fez com que o jovem permanecesse por um curto tempo no local, até que a mulher o levasse novamente até a tia. “Não tenho para onde ir. Estou esperando uma luz no fim do túnel”. Sem comer há três dias devido à preocupação, a mulher chegou a cambalear, sendo amparada por outros moradores, que lhe ofereceram iogurte e um lanche.
Primeiro despejo de muitos ali, que se viram afetados pelo desemprego durante a pandemia, o semblante a cada minuto que passava variava da tristeza com a falta de ter para onde ir com o medo de uma ação violenta por parte da PM. O dia já tinha amanhecido quando a Força Tática do 9° Batalhão de Polícia Militar Metropolitano passou a encenar que entraria no local.
Gritos de comando, sobe e baixa escudo, sobe e baixa cassetete, além de formações táticas deixaram os moradores ressabiados com o possível uso de armamento menos letal pela polícia, como bombas e balas de borracha.
“Aqui a busca é por moradia, não é criminalidade e nem violência”, disse o músico Alexandro Ferreira da Silva, 42, uma das pessoas escolhidas pelos moradores para ser uma liderança do local, criticando o cerco policial.
Durante todo o tempo uma mulher andava de um lado ao outro dando atenção às famílias e vez ou outra conversando com os comandantes da ação policial. Professora de carreira e atualmente ocupando uma vaga de vereadora em São Paulo, Silvia Ferraro (PSOL), se mostrou aborrecida por nenhum projeto de lei ter sido sancionado a tempo de evitar a reintegração de posse na Penha Brasil. “É preciso projetos que impeçam despejos na pandemia. Na Câmara [Municipal] não entramos com projeto na expectativa da aprovação na Alesp [Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo] no âmbito estadual”, explicou.
O texto na Alesp mencionado por Silvia foi aprovado em primeira votação, no entanto, repousa nas galerias do Legislativo paulista aguardando quórum para a análise de emendas. Um projeto que visa suspender remoções durante pandemia também foi protocolado em âmbito federal. Aprovado pelos deputados, aguarda ser apreciado pelo Senado.
Se ainda não há uma lei específica sobre o tema, o remoção vai na contramão de recomendação do Conselho Nacional de Justiça, para que magistrados “avaliem com cautela o deferimento de tutelas de urgência que tenham como objetivo a desocupação coletiva de imóveis urbanos e rurais, principalmente quando envolverem pessoas em estado de vulnerabilidade social e econômica, enquanto a pandemia do novo coronavírus persistir”. Uma recomendação similar também foi pauta da Organizações das Nações Unidas ao Brasil, país em que são registrados duas mil mortes por dia pela doença. O pedido foi comunicado em agosto de 2020, assinado pelo relator especial sobre o direito à moradia, Balakrishnan Rajagopal.
Assim como os moradores, a vereadora achou desnecessária a presença do grande contingente policial, com cerca de 120 oficiais e soldados, segundo o major Reco. “As pessoas acham que violência é só quando tem agressão física, mas as crianças que estão aqui vão ficar traumatizadas para o resto da vida.”
Por volta das 9h os primeiros caminhões partiram levando madeira, móveis, eletrônicos, sonhos e desejos de quem morava ali. Assim como todos que habitavam a favela, Sandra Costa da Silva, 23, alegou que não tinha para onde ir. “Vou levar só os móveis para a casa da minha mãe [no Jardim Vista Alegre, na mesma região]. Para onde eu vou, eu não sei”, disse, enquanto amamentava o filho de dois meses.
Dono do terreno, o milionário Romildo Ribeiro Soares, ou R.R. Soares, não deu as caras no local. Como seu representante estava o advogado Leonardo Girundi. Questionado pela reportagem sobre qual a destinação será dada ao terreno que, segundo os moradores, era um monte de mato até a chegada deles, afirmou que a Igreja Internacional da Graça de Deus tem uma série de projetos para o espaço. “A igreja tem um projeto de atendimento para a comunidade, além de um templo”.
Quem também não parou um minuto, gastando o salto no chão de terra batida, foi a advogada das famílias, a criminalista Karina Rodrigues de Andrade, 39, que atuou junto à Defensoria Pública tentando um desfecho feliz para os sem-teto. Em sua petição na tentativa de barrar a ação, Karina justificou que o terreno possui dívidas de IPTU no entorno de R$ 200 mil. No entanto, Girundi negou a existência de tal débito. Para ele, as dívidas contraídas junto à prefeitura são recentes, multas por construção irregular com os barracos erguidos desde dezembro.
Procurada, a Prefeitura de São Paulo informou que “a área é particular e a reintegração de posse foi determinada pela Justiça. A Administração Municipal informa que as famílias que ocupam a área foram cadastradas pela Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social e receberam orientações sobre a rede socioassistencial, acolhimento e cadastro para programas de transferência de renda. Também foi colocado à disposição das famílias, o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) Casa Verde. Até o momento, cinco famílias aceitaram o acolhimento.
O Núcleo de Solução de Conflitos da Sehab atuou no sentido de mediar uma saída voluntária do terreno. A secretaria oferta também o cadastro nos programas habitacionais do município. Os ocupantes não se enquadram nos critérios para atendimento via auxílio aluguel, conforme os parâmetros definidos na Portaria SEHAB 131/15”.