O ACORDO SIGILOSO que a Braskem firmou com moradores atingidos pelo afundamento de cinco bairros em Maceió, resultado da extração de sal-gema na capital alagoana, contém cláusulas abusivas que blindam a empresa de culpa e abrem espaço até para processo contra as vítimas. A assinatura do documento era condição para que a Braskem indenizasse os moradores.
O Intercept Brasil teve acesso com exclusividade ao acordo sigiloso de um dos moradores. Ele tem algumas cláusulas padrão, que se repetem nos acordos com outras vítimas. Uma é a de confidencialidade. Graças a ela, a empresa manteve vários termos abusivos em sigilo por quase quatro anos – agora, eles serão conhecidos.
O desastre ambiental ligado às atividades da Braskem foi descoberto em 2019, quando o Serviço Geológico do Brasil apontou que os tremores de terra sentidos pelos moradores do bairro de Pinheiro desde 2018, as rachaduras nos imóveis, as fendas nas ruas, os afundamentos e o surgimento de crateras foram consequência da instabilidade do solo, causada pela extração de sal-gema pela empresa na região da Lagoa Mundaú.
A empresa se instalou em Maceió na década de 1970, ainda com o nome de Salgema Indústrias Químicas. Hoje, ela faz parte do grupo empresarial Novonor, da família Odebrecht, que detém mais da metade das ações da Braskem. A segunda maior acionista é a Petrobras, com 47%.
Devido à gravidade dos danos, cerca de 55 mil pessoas tiveram que deixar suas casas às pressas, à medida que o risco de desabamento se espalhava pelos bairros de Pinheiro, Mutange, Bebedouro, Bom Parto e Farol. O colapso da mina 18, no início de dezembro deste ano, provocou novas desocupações e aumentou o mapa da área de risco em Maceió.
Hoje, a Braskem é dona de quase todas as casas de suas vítimas, transferidas para a empresa após benevolentes negociações com o Ministério Público Federal, o Ministério Público de Alagoas, a Defensoria Pública do estado e a da União. O primeiro resultado dessas conversas foi o Termo de Acordo para Apoio na Desocupação.
Entre outras coisas, ele permitiu que a posse ou a titularidade dos imóveis dos bairros afundados em Maceió ficasse com a empresa. Isso foi imposto pela Braskem como um “requisito essencial” para que ela aceitasse desenvolver ações de reparação de danos, entre elas a indenização dos moradores que perderam suas moradias.
O acordo com os órgãos públicos serviu de base para o documento sigiloso assinado pelos moradores. Chamado de “Instrumento Particular de Transação Extrajudicial, Quitação e Exoneração de Responsabilidade”, ele enfatiza que a Braskem indenizou quem perdeu seus imóveis “por mera liberalidade”, ou seja, que isso não implica em confissão de culpa.
Após quatro anos sem dar andamento à investigação, a Polícia Federal deflagrou a Operação Lágrima de Sal em 21 de dezembro. A suspeita é de que as atividades da Braskem em Maceió não seguiram os parâmetros de segurança previstos.
A empresa também teria apresentado dados falsos e omitido informações dos órgãos de fiscalização, o que permitiu a continuidade da extração de sal-gema, mesmo quando as minas já tinham problemas de estabilidade.
A PF cumpriu 14 mandados de busca e apreensão, cujos alvos eram gerentes, técnicos e consultores da Braskem. Independentemente dos resultados da operação, contudo, os moradores que se sentiram pressionados a assinar o acordo sigiloso com a Braskem não poderão tomar medidas contra a empresa.
Isso porque o documento tem cláusulas que impedem as vítimas de processarem a Braskem “quaisquer que sejam os resultados das investigações” sobre as causas do afundamento dos bairros em Maceió. Se a pessoa indenizada não entregar todos os documentos para transferência de posse do imóvel à empresa, porém, ela poderá ser processada.
Braskem fez acordo com 18,5 mil moradores afetados por afundamento de terras em Maceió
Desde 2020, a Braskem apresentou mais de 19 mil propostas de acordo para os moradores dos bairros afetados, e cerca de 18,5 mil foram aceitas. Isso é parte do Programa de Compensação Financeira e Apoio à Realocação, criado pela empresa após a assinatura de acordo com os órgãos públicos.
Para receber o dinheiro da Braskem, me disse um morador – que não será identificado para protegê-lo de processos por quebra de confidencialidade –, era preciso aceitar todos os termos, sem espaço para discussão.
O valor da indenização corresponde ao preço do imóvel afetado, de acordo com a avaliação feita por uma empresa contratada pela própria Braskem, mais R$ 40 mil de danos morais. Em muitos casos, a quantia recebida pela vítima sequer é suficiente para comprar outro imóvel.
“Eu me apressei para assinar logo, se não ia ficar sem moradia. Precisava comprar um apartamento, e os preços estavam subindo muito rápido, devido ao aumento da procura provocado pelo afundamento dos bairros. Mesmo achando injusto, principalmente o valor do dano moral, eu tive que aceitar pela necessidade do momento”, me disse a vítima.
Esse depoimento coloca em dúvida ao menos três termos do acordo. Logo no início, o texto diz que as partes “mantiveram tratativas […] e, mediante concessões mútuas conseguiram compor seus interesses”. Diz também que há “termos vantajosos ao beneficiário”. Já na cláusula 10, consta que tudo foi “livremente negociado, não tendo [o morador] sido forçado ou coagido, de nenhuma forma”.
Todas as pessoas com quem falei quando estive em Maceió, em medos de dezembro, são unânimes em dizer que não puderam negociar termos melhores para o acordo.
“Ouvi que, se eu não quisesse aceitar, teria que esperar o resultado da justica daqui a 20 ou 30 anos. Tem coação maior que essa?”, me perguntou Alexandre Sampaio, presidente da Associação de Empreendedores Vítimas da Braskem.
O morador com quem falei confirmou que a Braskem não fez concessão alguma e que o acordo só foi vantajoso para ela, já que todos que tiveram que negociar com a empresa estariam com a corda no pescoço.
Para o advogado Elmanuel de Freitas Machado, que representou várias vítimas da mineradora nos acordos com a Braskem, o que aconteceu foi uma venda forçada de milhares de imóveis, contrariando o direito à propriedade privada. “Eu só posso comprar o bem se você puser à venda. Nesse caso, o preço quem dá é você. O que a Braskem fez foi impor o valor que o proprietário deveria receber e pagou R$ 40 mil de dano moral para ele calar a boca”, avaliou.
Alguns clientes, acrescentou, deveriam ter recebido até 15% a mais por seus imóveis, mas a Braskem não cedeu. “Não pagaram um centavo além do que queriam. E não havia a quem recorrer, porque o acordo foi aprovado pelos órgãos públicos”.
Sobre as propostas de acordo oferecidas, a Braskem informou, por meio da assessoria de imprensa, que já foram pagos mais de R$ 3,8 bilhões, somados todos os auxílios financeiros.
Acrescentou ainda que o morador tem a possibilidade de recusar o acordo e buscar uma resolução para o caso no Judiciário, se não concordar com a proposta. Esse é o mesmo argumento que os moradores dizem ter ouvido como uma forma de coação.
Quanto à posse dos imóveis indenizados, a Braskem disse que era necessário assumi-la para “adotar medidas para limpeza, conservação, controle de pragas e segurança patrimonial”.
DESASTRE AMBIENTAL EM MACEIÓ: Veja o acordo sigiloso que a Braskem tentou esconder
A empresa afirmou também que as discussões futuras sobre a utilização da área poderão ser feitas a partir do Plano Diretor do Município de Maceió e não caberá exclusivamente à Braskem. O plano diretor, contudo, está desatualizado e as discussões sobre ele têm sido feitas sem transparência.
O documento a que o Intercept teve acesso tem 22 cláusulas, algumas delas com até nove parágrafos. As únicas que falam sobre responsabilização judicial têm como alvo a vítima, como a de sigilo e a da obrigatoriedade de entrega de documentos para conclusão da transferência de posse dos imóveis. Quando relacionadas apenas à Braskem, as cláusulas eximem a empresa de processos presentes ou futuros.
Veja abaixo trechos desse acordo, recheado de cláusulas abusivas.
Braskem livre de processos movidos pelas vítimas
Ao menos três cláusulas amenizam a responsabilidade jurídica da Braskem e intimidam as vítimas que assinaram o acordo a não questionarem seus direitos na justiça – nem se surgirem fatos novos na investigação que acabem por implicar a empresa nas tragédias que essas pessoas sofreram.
A cláusula três diz que os moradores concedem à Braskem “a irrevogável quitação […] de quaisquer obrigações” e que nada mais poderão reclamar.
O trecho seguinte é ainda mais cruel, pois faz os moradores admitirem que as condições do acordo “serão sempre firmes, boas e valiosas por si e seus herdeiros e/ou sucessores, quaisquer que sejam os resultados das investigações”. As vítimas ainda renunciam “a quaisquer outros direitos eventualmente existentes, presentes ou futuros, para nada mais reclamar em tempo e lugar algum, a qualquer pretexto”.
Cláusulas assim são comuns em acordos do tipo, mas devem ser vistas por uma perspectiva crítica quando tratam de uma empresa multimilionária, cuja atividade de mineração levou milhares de pessoas a perderem suas moradias e uma cidade a perder cinco bairros, além de equipamentos públicos e prédios históricos.
Tecnicamente, o documento é classificado como um acordo com efeitos civis, que contém registros unilaterais de desoneração da empresa. Ou seja: há termos ali que tiram das vítimas a possibilidade de entrar com processos para cobrar indenizações mais justas. Isso é abusivo, se levada em consideração a fragilidade das pessoas no contexto em que o acordo foi firmado.
Ele está repleto do que se pode chamar de cláusulas leoninas, ou seja, itens inseridos unilateralmente em um contrato, aproveitando-se de uma situação desigual entre as partes.
“A Braskem deu um xeque-mate jurídico”, disse o advogado Machado. Para ele, a empresa criou mecanismos que a beneficiam em tudo e, aos moradores, em nada.
“As pessoas ficaram de mãos atadas para pleitear qualquer revisão no acordo. E, se questionarem isso judicialmente depois, podem ser punidas, tanto o morador, quanto o advogado”, explicou.
A cláusula quatro, por exemplo, desobriga “inteiramente a Braskem” de responsabilidade pela tragédia, além das suas “respectivas companhias subsidiárias, subcontratadas, afiliadas, controladoras, cessionárias, associadas, coligadas ou qualquer outra empresa dentro de um mesmo grupo”.
A Braskem ainda poderá ser investigada pelas autoridades e punida, se for o caso, mas termos como esses blindam a empresa de responder a processos movidos por milhares de famílias prejudicadas, ainda que os resultados dessas investigações revelem fatos novos sobre a tragédia.
Até sócios, diretores, presidentes, acionistas e proprietários, além de todos os empregados da Braskem ou de empresas ligadas a ela, se blindam da possibilidade de responderem a processos movidos por moradores pelos desastres ambientais em Maceió.
Pela cláusula cinco, quem assina o acordo se abstém de “exercer, formular ou perseguir qualquer demanda, ação ou recurso, sejam civis, penais ou administrativos, perante qualquer tribunal ou jurisdição”.
Há, ainda, cláusulas eximindo a Braskem de qualquer culpa pelo que ocorreu em Maceió. O parágrafo primeiro da cláusula um diz que a empresa está propondo um acordo com “termos vantajosos” para o morador apenas porque quer, e não porque admite ter cometido algum erro.
A cláusula oito também reforça que as partes “reconhecem que o pagamento da presente indenização está sendo realizada sem qualquer admissão de responsabilidade” por parte da Braskem.
A Braskem informou que, desde 2019, “desenvolve ações com foco na segurança das pessoas e na implementação de medidas amplas para mitigar, compensar ou reparar impactos decorrentes da desocupação de imóveis”. E que as cláusulas são “praxe usual na celebração de acordos indenizatórios e estão plenamente amparadas pela legislação nacional”.
Enquanto a Braskem repousa tranquila, a possibilidade de processo judicial recai sobre as vítimas. A cláusula 18 do acordo, que trata dos documentos para tirar delas a posse dos imóveis e entregá-la à Braskem, diz que a pessoa indenizada se compromete a assinar qualquer documento que seja necessário para a transferência da propriedade, “tão logo seja acionado pela Braskem”.
Caso se recuse ou se omita, a empresa poderá “adotar todas as medidas, inclusive ações judiciais cabíveis em face do beneficiário, para o devido cumprimento da obrigação”.
A cláusula de confidencialidade também coloca a vítima sob possibilidade de processo, obrigando a manter em sigilo tanto o acordo quanto a ação que o valida perante a justiça e que também corre em segredo. “Até as reuniões que tivemos, antes de assinar o documento, eles avisaram que eram sigilosas”, disse o morador com quem conversei em Maceió.
Procurada via assessoria de imprensa, a Braskem justificou que o sigilo serviria para preservar os moradores e comerciantes indenizados, para que os valores recebidos não sejam públicos. A cláusula, acrescentou, está amparada por lei e é comum em acordos indenizatórios.
Além de o valor da indenização não reparar completamente os danos materiais e morais das vítimas, vários trechos do acordo garantem à Braskem descontar determinadas quantias da indenização. A cláusula sete menciona até o dinheiro dos caixas dos condomínios.
De acordo com ela, em caso de apartamento, o morador não terá direito a “eventuais saldos de valores em caixa, bens ou direitos do condomínio […], uma vez que o beneficiário já está sendo indenizado pelo valor da área total do imóvel, englobando área privativa e comum”.
Questionada se isso daria à mineradora o direito de ficar alguma quantia que o condomínio tivesse em caixa, a Braskem negou que houvesse “qualquer repasse de valores” para ela.
Já o parágrafo quarto da cláusula um autorizava a Braskem a descontar do valor da indenização que o morador receberia alguma quantia que a empresa tivesse antecipado antes de fechar o acordo.
Isso acontecia no caso dos imóveis onde eram realizadas atividades econômicas, para compensar minimamente os prejuízos dos empreendedores afetados.
Já o parágrafo sexto ressalta ao morador que “débitos, taxas, encargos ou tributos vinculados ao imóvel” serão descontados do valor dos danos materiais. Machado acredita que essa cláusula favorece a Braskem, porque a empresa pode descontar da indenização as dívidas que o imóvel tem, mas conseguir descontos quando for pagá-las, principalmente as taxas de cartórios e os tributos municipais.
“Ela se aproveitou de um tipo de comportamento relativamente comum de algumas pessoas, de não terem registros dos imóveis ou de acumularem débito de IPTU ou outro encargos”, disse o advogado.
Na nota que nos enviou, a Braskem argumentou que, independentemente da desocupação das casas ter ocorrido pelo risco de desabamento, “a quitação de débitos junto a credores é uma obrigação legal dos titulares dos imóveis”. Quanto às taxas cartorárias e tributos, a empresa negou que tenha recebido “qualquer isenção ou desconto”.
Quem assina o acordo declara, conforme a cláusula 12, que a Braskem ofereceu apoio complementar ao morador, referente a orientação financeira, busca de novo terreno ou moradia, apoio psicossocial e assistência técnica para retomada produtiva ou do negócio, no caso dos empreendedores.
Tanto o empresário Alexandre Sampaio, quanto o morador com quem conversei negam ter recebido qualquer apoio. “Tudo isso é para inglês ver”, disse a vítima.
“Recebi assistência zero para retomada do negócio. Junto com minha esposa, eu tinha empresas de três ramos diferentes, que funcionavam em um espaço de 200 metros quadrados. Depois do crime da Braskem, entre 2020 e 2021, meu pai era quem pagava meu plano de saúde. Hoje, eu estou me reestruturando, ainda cobrando a dívida de danos morais e materiais da Braskem”, contou Saraiva.
A empresa disse que disponibilizou auxílios financeiros e uma série de serviços aos moradores da região. Parte dessa quantia, contudo, é descontada do valor da indenização, após a assinatura do acordo com a Braskem.